Há dois dias foi o Carnaval, e eu caminhei 20 kms.
Ainda estou a tentar decidir em que categoria vou arquivar as minhas memórias (manifestamente poucas) de segunda à noite no Carnaval de Ovar. Se inicialmente a ideia de uma
garrafa de sangria colada a uma caixa às costas, com um tubo ligado directamente à boca parecia extraordinária, e a meio não menos interessante, não é a fantasia adequada para longas caminhadas, pelo que ficou esquecida na berma da auto-estrada na terça de manhã. O que é que eu estava a fazer na auto-estrada na terça de manhã? Já lá vamos.
A última coisa que me lembro é de estar a tentar pagar bebidas em copinhos pequenos a uma série de pessoas que tinham aquela característica especial de estarem em qualquer lado menos nos sítios onde eu procurava por elas. Estimo que seriam cerca das 4 da manhã.
A primeira coisa que me lembro é do brilho do sol na manhã seguinte. A segunda coisa que me lembro foi de me questionar porque estava a caminhar de forma tão empenhada, para onde estava a caminhar, e porque é que a rua onde me encontrava tinha tantas faixas e um rail de segurança a meio. A terceira foi de pensar "foda-se".
Continuei a caminhar da forma decidida que só é possível na ausência de alternativas. O saldo do meu telemóvel (todos os 50 cêntimos) tinha desaparecido na noite anterior e os carros que passavam não pareciam muito solidários com a minha situação. Alguns ainda apitaram. Espero que tenham sido apitos de encorajamento. Doía-me o pé, o joelho e a mão, pelo que tinha a certeza que tinha tido outro momento à joão sousa, torcido o tornozelo e caído algures.
Desesperei algumas vezes, depois de perceber que por muitas curvas que passasse não era a seguir que ia aparecer o fim da estrada, uma tabuleta com indicações ou sequer um sinal de civilização. Lembro-me de rir alto, o que, agora à distância, me parece muito estranho e sinceramente um pouco psicótico. O fato que eu vestia, outrora branco e agora a atingir tons respeitáveis de castanho, não ajudou a contrariar essa imagem.
Mas continuei, até acabar por chegar a uma portagem. Eram 8 da manhã. Hoje recontrui o percurso e percebi que de alguma forma consegui sair de Ovar e apanhar a A29 até à portagem da A1 em Estarreja, percorrendo uns simpáticos 18 quilómetros a pé. Nada mau para quem a ideia de ir de casa à Universidade a pé já parece abusiva.
Uma vez lá falei com os prestáveis senhores das cabines a quem expressei a minha indignação por terem de trabalhar num feriado de manhã. Por esta altura prometi a mim mesmo que ia começar a responder ao "boa tarde" quando passasse em portagens. Deixaram-me mandar umas mensagens e fazer um par de telefonemas. Claro que ninguém atendeu pelo que isto não ia acabar aqui. Recomendaram-me que esperasse no parque de estacionamento até alguém aparecer, mas não se diz a um homem de acção para esperar.
"A melhor alternativa é ir até Estarreja e apanhar o comboio". Meu caro senhor, a melhor alternativa era estar em casa a dormir, mas tá bem. Foram mais uns 5 kms diz-me o google earth.
Deveriam ser cerca das 11h quando cheguei a casa. Gostava de ter olhado para o espelho antes de me ir deitar, para perceber o que os transeuntes deviam ter pensado quando olharam para mim e me viram de barba por fazer há 3 semanas (estou farto desta aposta!), numa camisola de fato de treino com uma mancha enorme de sangria e os lábios pintados de vermelho, de vinho espero. Disse-me o meu irmão, que depois falou com o homem da portagem, que este me tinha descrito como "um bocado desorientado".
Mas este viajante teve finalmente o seu merecido repouso. Mas não muito que jogava o Porto e é preciso ter as prioridades bem definidas. E o Hulk está lá em cima, ligeiramente abaixo de respirar.
Conclusão: melhor Carnaval de sempre.
Ver berma entre quilómetros 15 e 16 da A29, sentido sul-norte, para provas.